quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

"A HORA DA ESTRELA" - parte I

O livro mais popular de Clarice Lispector foi exatamente o último que escreveu, “A Hora da Estrela”. Esse livro se tornou tão recomendável por parte dos “formadores de opinião literária” que passou a integrar frequentemente as leituras obrigatórias nas escolas secundárias e as listas da prova de literatura nos vestibulares; também passou a ser extremamente citado entre a “parcela culta da população” (= aqueles que lêem regularmente). “A Hora da Estrela” é uma obra-prima, com o detalhe de ser tão sucinta que pode ser lida de uma levada só. Como todo texto literário de qualidade, possui vários níveis de leitura, mas tem a característica de ser, provavelmente, entre todos os livros de Clarice (abstenção feita de suas obras infantis), aquele que oferece uma interface mais amigável para a primeira aproximação da do leitor. Ou seja: tem uma forma narrativa mais “fácil” de ser lida que os discursos desconcertantes dos textos mais pesados da autora. E tem um humor refinadíssimo, com o qual o personagem-narrador tenta, a todo custo, nos dar uma idéia de quem seja Macabéa, sem que nós, leitores, nos resumamos a sentir pena da protagonista. Afinal, não é fácil retratá-la com dignidade: ela é uma pessoa simplesmente nascida pelo avesso. Teve uma vida absolutamente infeliz mas, por falta de alcance da própria existência, não tem consciência disso (ou mesmo: sequer tem consciência no sentido pleno da palavra). Em entrevista à TV-Cultura, a cineasta Suzana Amaral, que dirigiu o famoso filme baseado nesse livro, num insight muito feliz, disse que considera Macabéa a versão feminina de Macunaíma, uma espécie de grande arquétipo nacional da “heroína-sem-nenhum-caráter”. Não no sentido de que ela seja “mau-caráter”, mas sim, entendendo-se que ela não tem a própria instrumentalidade para a composição de um caráter: é um ser alheio às categorias de julgamento, com uma "proto-consciência" que é uma massa informe. O livro pode ser entendido como uma espécie de biografia de Macabéa, mas, na verdade, temos poucos fatos a serem notados: ela basicamente sobrevive num mundo sem atrativos; tem um trabalho monótono e, nas horas vagas, pouco mais faz além de ter pensamentos irrelevantes e estranhos; se envolve com um rapaz chamado Olímpico, que, aliás, é desinteressado e a trata muito mal. Pois bem, uma colega de trabalho lhe indica uma cartomante – à qual Macabéa comparece, adquirindo momentaneamente uma possibilidade da felicidade, mas apenas como um preâmbulo do escatológico ápice da sua parca existência, que culmina em seu atropelamento (não importa eu ter falado o final da história, pois isso é indiferente: não se trata de uma trama de mistério de um dos livros da inventiva Agatha Christie). Mas, como estamos tratando de Clarice, os fatos pouco importam e são as "repercussões dos fatos" que devemos buscar para tecermos nossas histórias “verdadeiras” - ou melhor, nossas versões das possíveis histórias. Daí a questão de haver entendimentos diversos sobre a autora. Por exemplo, foi em países estrangeiros, Estados Unidos e França, que foram iniciados os estudos de sua faceta como uma escritora feminista, fato que achei deveras curioso, pois esse jamais seria um dos focos principais que eu apontaria em sua obra. Mas, afinal, outros leitores e outros pontos de vista nos ajudam a atentar para aspectos que tínhamos subestimado inicialmente e esses estudos dela com uma faceta feminista também passaram a render frutos no Brasil. A versão cinematográfica de “A Hora da Estrela” deu notoriedade a Suzana Amaral e encontrou na atriz Marcélia Cartaxo uma Macabéa perfeita (não por acaso, a atriz ganhou o prêmio de interpretação no festival de Berlim), correndo mundo e sendo aplaudido efusivamente. O filme, certamente, ajudou a renovar e ampliar o interesse por Clarice Lispector, que sempre foi considerada como “hermética” – no entanto, penso que ela seja mais “diferente” que “difícil”. Atualmente, acredito que esse seja seu livro mais lido, mais até de que seu célebre volume de contos, “Laços de Família”. Num próximo post, vou comentar especificamente a respeito do episódio da cartomante, que é o ponto alto do livro, expondo uma interpretação minha a respeito do que se sucede nesse trecho. Até lá, procurem e leiam “A Hora da Estrela”. Inclusive, para quem nunca leu Clarice, juntamente com alguns contos em particular, é uma ótima forma de começar a penetrar o universo dessa autora única.

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