sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

DESFILES 2009 - RESENHA RÁPIDA

Sobre os resultados do desfile, vou ser muito sucinto nesse momento. Devo comentar notas “estranhas” após a divulgação das justificativas dos jurados e, no decorrer do ano, vou enfocar assuntos e momentos particulares do desfile. No momento, vou me apenas esboçar minha avaliação geral:

Salgueiro começa seu desfile na segunda-feira de Carnaval

O Salgueiro foi campeão com toda justiça. É verdade que o samba-enredo não era nenhum primor, mas estava longe de ser ruim, e serviu adequadamente à empolgação dos componentes e das arquibancadas. O enredo foi de um desenvolvimento exemplar e era a cara da escola, o que lhe deu confiança e autenticidade. Já tinha passado a hora de um justíssimo título para a dobradinha “Renato Lage-Salgueiro”.

A Portela, pelo segundo ano consecutivo, surpreendeu a todos positivamente. Embora correndo por fora, se ela ganhasse, não seria injusto. Seria muito bonito tê-la com o vice-capeonato, perdido nos décimos da última nota do último quesito. Espero que a escola consolide essa força nos próximos anos, retornando ao nível do qual nunca deveria ter caído. Parece cada vez mais próximo o dia em que a águia vai voar mais alto de novo... depois dos longínquos 1980 e 1984.

A Beija-Flor estava com cara de Beija mesmo, mas achei muito salutar que ela não ganhasse esse ano. Aliás, será muito salutar que ela não ganhe sempre, como tem acontecido nos últimos anos. É preciso que haja diversidade e autenticidade vencedora nas demais escolas, e parar com essa miragem de todas quererem ser desesperadamente uma “pseudo-beija-flor-melhor-que-própria-beija-flor” – verdade seja dita, as diretrizes das avaliações dos jurados têm sido os maiores culpados por essa miragem...

A Vila Isabel fez um belo carnaval e a união, muito arriscada, de Alex com Paulo acabou dando um resultado viável na avenida. Seria uma vitória justa, mas não acho que a quarta colocação seja totalmente injusta, o que só mostra como havia um certo equilíbrio e que o ligeiro favoritismo do Salgueiro não excluía outras possibilidades. Paulo Barros deve sair da escola, o que acho de bom agouro para ambos.

A Grande Rio, depois daquele belíssimo terceiro lugar até então inédito que o Joãosinho Trinta lhe proporcionou com “O Brasil que Vale”, perdeu o pé e se tornou uma verdadeira “empresa de samba”. Ou, como vi um analista citando, uma espécie de “clube com bateria”. A escola sofre de uma ânsia de gigantismo e de uma busca de vencer a todo custo que desanima qualquer amante dos desfiles-que-não-existem-mais. Mesmo que visualmente suntuosa, a escola não merecia sequer estar entre as campeãs.

A Mangueira se salva pelo samba e pelo chão firme, mas fiquei assustado com o trabalho decepcionante do Roberto Szaniecki. Ele havia feito ótimo trabalho de alegorias e fantasias na Grande Rio, o que nos dava uma impressão de que traria uma Mangueira positivamente exuberante, mas a realidade foi um desfile de alegorias ou incompletas ou em desmanche. O 6º lugar ainda saiu no lucro.

Das demais escolas, gostei do jeito leve da Imperatriz (e do samba que muitos torceram o nariz), vi sinais preocupante de esgotamento na Tijuca (a escola já está se mexendo para se renovar), a Porto da Pedra e a Mocidade, mais uma vez, se posicionaram como pretendentes preferenciais ao rebaixamento (triste ver a Mocidade, que teve três períodos áureos quase ininterruptos com Arlindo, Fernando e Renato, nessa decadência contínua). A Viradouro foi um caso à parte, muito criticada, mas também muito incompreendida (no futuro vou escrever um post sobre a beleza desse enredo que une energia e orixá).

A maior injustiça desse carnaval e da última década veio de onde eu menos esperava: o massacre injustificado que o Império Serrano sofreu dos jurados. É inacreditável. Só uma coisa explica: os jurados já dão a menor nota pra primeira escola do domingo e passam a julgar as demais, sempre dando notas maiores. Gente, ver o desfile do Império foi a ocasião de presenciar a manifestação de uma escola atual autêntica nesses tempos bicudos. Teve evolução perfeita. Teve harmonia ecoando nas vozes dos componentes e das arquibancadas. Teve o melhor samba do ano (pelo menos ninguém ousou dar nota menor que 10 nesse quesito). Teve a melhor bateria, com paradas (“bossas”) arrepiantes – e ainda perdeu décimo nesse quesito! Mesmo as alegorias, que alguns acusaram de serem “pequenas” (e por acaso “tamanho” é critério para tirar ponto?), estavam totalmente dentro do enredo e com acabamento perfeito. A escola merecia tranquilamente estar no sábado das campeãs. E, num mundo de sonhos, se fosse campeã, não só seria justo, como poderia ter feito uma revolução histórica em prol de uma forma simultaneamente moderna e tradicional de se fazer escola de samba...

Império Serrano abriu o desfile no domingo: o grande injustiçado do ano.

Essa “maldição-da-abertura-de-domingo-pela-escola-que-sobe” nos faz pensar que a União da Ilha tem um motivo para celebrar (porque nesse ano, finalmente, subiu do Acesso e vai voltar ao Especial) e outro para chorar (porque, nesse padrão inglório imposto, o prognóstico é que vai ser rebaixada no ano que vem...). Mas vou torcer ferrenhamente para que a Ilha fique entre as grandes. É uma escola que merece.

Por fim, a melhor análise sobre os resultados que eu li foram feitas por Luis Carlos Magalhães. Concordo com praticamente tudo que ele disse. Vá direto à fonte e cesse em: http://odia.terra.com.br/carnaval/memorias.asp.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

TRICOLOR SÓ TEM UM!

Num post passado eu estava contando a história do samba-enredo “A Lenda das Sereias” e comentei que a escola de samba Inocentes de Belford Roxo havia feito um reedição, antes que o próprio Império Serrano o fizesse. Pois bem, meu amigo e colega de equipe de trabalho, o Marcão, leu aquele post e fez calorosos protestos por não ter sido citado, pois ele é natural de Belford Roxo! Então, eu prometi que iria tocar no assunto assim que fosse possível e, como ambos somos torcedores tricolores, me lembrei dele instantaneamente.

Se, ao ser informado que “somos tricolores” você vier me perguntar “qual deles”, se por acaso sou são-paulino, deduzindo isso pelo fato de eu ser paulista de nascimento, então vou dizer o seguinte: você não entende nada de futebol! Pelo menos na minha opinião e na do genial Nelson Rodrigues, um dos mais ilustres tricolores da história. Segundo o Nelson, “tricolor só tem um": é o Fluminense. Os outros “são times de três cores”.
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Nélson Rodrigues: um célebre torcedor do Flu - vestido a caráter, em foto de 1979.

Pois bem, pode-se perguntar: e por que raios eu, paulista, torceria para um time de outro Estado?! Muito simples: meu pai é fluminense (=nascido no Estado do Rio de Janeiro) e fluminense (=torcedor do time Fluminense) e, em razão dessa ascendência, sou tricolor desde que me conheço por gente. Aliás, embora superficialmente eu pareça ter muito mais influência da minha mãe, tenho importantíssimas qualidades que devo a meu pai – o time de coração é apenas uma delas.

E, detalhe: eu torço unicamente para o Fluminense. Não tenho time algum em nenhum outro Estado – nem mesmo em São Paulo. Posso ter alguma simpatia circunstancial, tal como preferir a Ponte Preta ao Guarani (inclusive fiz minha faculdade em Campinas), ou normalmente torcer contra o Flamengo ou Corinthians, mas são apenas opiniões de momento. Torcer, só pro Fluminense (e para a Seleção Brasileira, claro).

Mas como a gente perde o amigo (ou o time), mas não perde a piada, há uma curiosa brincadeira envolvendo um hipotético jogo Fluminense x Barcelona rodando no youtube há um bom tempo. É impagável. Esse vídeo rendeu alguns bordões para o “dialeto” no dia-a-dia no trabalho (onde aliás há outros tricolores e meu chefe imediato é, por ironia, flamenguista!) – o mais usado é o já antológico “que azar, hein!”.

Se ficaram curiosos, vejam o escracho:

http://www.youtube.com/watch?v=7j54ncQ59YM


Importante: o time tricolor tem as seguintes cores: VERDE, BRANCO e GRENÁ.

Em tempo, o “GRENÁ” é diferente de “vermelho”, não confundam! Se isso ajudar, vamos às definições vernaculares dos dicionários: “a cor vermelho-castanha da granada (mineralogia)” (Dicionário Houaiss) ou “a cor vermelha da romã” (Dicionário Michaelis). Assim, fica esclarecido o que seja o já célebre “grená”, certo? Havendo dúvidas, procurem uma granada ou então uma romã e não se fala mais nisso. rs. Ou basta olhar o grená in loco, no brasão do Flusão:



E, pra galera, aí vai o “hino de coração” do clube, composto por Lamartine Babo (letra) e Lirio Panicalli (música):


Sou tricolor de coração
Sou do clube tantas vezes campeão
Fascina pela sua disciplina
O Fluminense me domina
Eu tenho amor ao tricolor
Salve o querido pavilhão
Das três cores que traduzem tradição
A paz, a esperança e o vigor
Unido e forte pelo esporte
Eu sou é tricolor!

Vence o Fluminense
Com o verde da esperança
Pois quem espera sempre alcança
Clube que orgulha o Brasil
Retumbante de Glórias
E vitórias mil

Vence o Fluminense
Com o sangue do encarnado
Com amor e com vigor
Faz a torcida querida
Vibrar de emoção
O Tricampeão

Vence o Fluminense
Usando a figalguia
Branco é paz e harmonia
Brilha com o sol da manhã
Qual luz de um refletor
Salve o tricolor


E por que chamo de “hino de coração”? Porque é o que todos conhecem e se celebrizou no coração dos torcedores. No entanto, pasmem, o hino oficial é outro, composto por Antonio Cardoso de Menezes Filho!

E, mais história ainda... houve um primeiro hino, com letra de Coelho Netto, utilizando como base a música de “It´s a long, long way to Tipperary” de H. Williams, que foi trocado pelo hino oficial acima por ter virado motivo de paródias.

As letras completas desse hinos, bem como links de audição, podem ser acessados em: http://www.flumania.com.br/histori3.htm .

sábado, 14 de fevereiro de 2009

ECOS DA ÍNDIA V

Hoje vamos falar sobre o dia-a-dia do Luis no período do curso em Kannur. Ele logo ressaltou as roupas típicas do local: as mulheres vestidas (ou melhor, cobertas) de preto e os homens usam o “dothi”. Muito bem, o que é o “dothi”? Como uma imagem vale mais que mil palavras, providenciei uma ilustração para mostrá-lo (obs: esse não é o Luis, trata-se de um nativo), mas vale a pena repassar a descriçaõ do Luis: “uma espécie de sainhas masculinas, tipo sarongue, de algodão branco, com um barrado que varia de cores; não se trata de uma camisa; acompanha um lençol de 4 metros que os homens enrolam na cintura”. Nas ocasiões formais, usa-se em estilo longo; caso contrário – e quando o calor aperta – dobram a barra em direção à cintura, de forma que a indumentária fica com um aspecto “balonê” (algo que deve ser involuntariamente hilário, penso). Claro que, num ímpeto de novidades, o Luis comprou seu próprio dothi, mas, a despeito do seu professor ter prometido ensiná-lo a vestir, acabou ficando receoso de usar: não sabia como amarrar aqueles 4 metros de pano e ficou com medo de cometer gafes na forma de usar o traje.Afinal, pior que não fazer é tentar fazer errado, acho que faz sentido. rs.

Logo após a chegada para se iniciar o curso, eles foram submetidos a uma consulta com os mestres da escola. Com base nesse exame, eram indicados para fazer tratatamentos específicos, que se somavam à rotina do curso ( por si só naquele ritmo puxado que já comentamos). O Luis, por exemplo, se submeteu a um tratamento de uma semana, todos os dias , de uma massagem chamada “shavurthee” – da qual eu nunca tinha ouvido falar, aliás. Funciona assim: o massagista se dependura numa corda presa ao teto e faz a massagem com os pés – o paciente fica deitado no chão. Ele disse que adorou e que o efeito é ótimo. No oitavo dia, ele complementou o tratamento com uma “purgação induzida” com óleo de rícino medicado com ervas – o objetivo é eliminar toxinas concentradas no abdômem em decorrência da semana de massagens. A massagem “shavurthee” veio das técnicas de manutenção de saúde de lutadores de uma arte marcial chamada “kalari”, oriunda do próprio sul da Índia, sendo considerada a raiz de várias outras modalidades de massagem dessa região.

No seu caminho entre a moradia e o curso (que, como falamos no outro post, ele aproveitava para fazer muito a pé) ele passava sempre à frente de uma escola inglesa e acabou fazendo amizade com os alunos, que estavam muito interessados em conversar com ele e tirar fotos – ele diz que as crianças são extrovertidas, simpáticas, sorridentes e muito “conversadeiras”. Notou que elas usam aqueles uniformes típicos dos anos 30 ou 40 (eu, por obra de liberdade poética, imaginei algo parecido com Havana, em Cuba, onde muitas vezes imagina-se parado no tempo... será que tem algo a ver? vou consultar o Luis). Estabelecidos esses primeiros contatos naturais, o professor de Ciências convidou-o a comparecer numa sexta-feira para fazer um bate-papo com a classe, certamente para levar ao conhecimento deles um pouco do que é ser um brasileiro e da nossa visão de vida.

Lodo de início, ele adorou o aspecto da culinária... a comida é muito barata, diz que um "verdadeiro banquete" sai por meros R$ 6,00! Se quiser beber os sucos, no entanto, o preço dobra (ainda assim o preço total é uma pechincha). Nossas idéia de que o condimento lá é muito forte está correta. As comidas indianas com as quais estamos acostumados aqui (ele cita como comparação o Tandoor e o Govinda, famosos restaurantes paulistanos) são “fraquinhas” perto daquelas que se acha por lá em “qualquer buraco”. Deliciosas – e muito apimentadas. A base da culinária da região, aliás, é vegetariana (mas, lembremos, nem toda culinária indiana é apenas vegetariana).

Ele ficou muito impressionado com o massagista, um senhor de 86 anos, chamado Mr. Krishnna. Imaginem alguém com essa idade e com condicionamento físico, alongamento e disposição para aplicar uma vigorosa massagem dependurado numa corda! Não sei como, mas o Luis disse que eles conseguiram se comunicar “muito bem” no idioma malayalam (!). Na última sessão, o mestre massagista convidou o Luis para aprender a técnica “shavurthee”. Ele ficou verdadeiramente emocionado com o convite. Mas isso exigiria um mínimo de duas semanas de dedicação, tempo que ele não tinha disponível, pois já estava no final de sua estada no curso em Kannur e de malas prontas para Coimbatore. Conclusão: em suas próprias palavras, ele já tem "um grande motivo para voltar à Índia". Quem sabe alguns de nós não aproveitamos e vamos com ele da próxima vez.

Nos postss seguintes, vamos falar do clima de religiosidade e da passagem de Luis pela cidade de Cochin, antes de chegar a Coimbatore.

Em tempo, atendendo a um pedido meu, o Luis providenciou um dhoti para mim. Vou tentar convencê-lo a vestirmos esse traje típico e sairmos pelas ruas de São Paulo. Espero que, numa cidade pretensamente cosmopolita como a nossa, isso não seja motivo de estranhamento algum. rs.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

HIPÓLITO E FEDRA: uma tragédia recontada através dos séculos.


A história de Hipólito e de Fedra, um episódio clássico da mitologia grega, se celebrizou principalmente pelos relatos teatrais para o qual foi matéria-prima.

A primeira versão que chegou conservada aos tempos modernos foi o texto “Hipólito porta-coroa” (ou “porta-guirlanda”), de Eurípedes, um dos três grandes poetas trágicos do teatro clássico grego. O mesmo dramaturgo já havia feito uma versão anterior, infelizmente apenas com um trecho conservado (50 versos), que se chamava “Hipólito velado”.

Outro texto dramático baseado nessa história, chamado de "Fedra", veio também da antiguidade - dessa vez, uma criação do filósofo romano Sêneca. Este é um texto de violência mais explícita, mas, suspeita-se que tenha sido escrito para ser declamado, ao invés de encenado, o que fatalmente modifica a forma de trabalhar os versos, que tomam outras colorações.

Por fim, temos a versão bem mais recente, também chamada de “Fedra”, do grande clássico francês, Jean Racine, do século XVII - que, aliás, inova em alguns pontos, tais como a inclusão da personagem Arícia, criando uma importante triangulação na economia afetiva do texto, com um amor idealistíco - e proibido - entre ela e Hipólito.

Eu já havia lido o primeiro e o último desses textos, faltando-me ainda a oportunidade de ler a versão de Sêneca.

Pois bem: dia desses, na Livraria Cultura, por acaso, me caiu às mãos o livro "Hipólito e Fedra - três tragédias", de Joaquim Brasil Fontes, que traduz os três textos em seqüência (e acompanhados do texto no original), com comentários e notas. Um verdadeiro achado para os amantes das artes dramáticas, em particular, ou dos culturos da civilização greco-romana, em geral.

A ressaltar: ainda mais que, no vernáculo, por falta de uma cultura humanística mais pujante e perscrutadora, análises de textos originais gregos ou latinos são (infelizmente) raras – quando muito, cobre-se lacunas com tampões e temos alguma oferta de textos “terceirizados”, traduzidos do inglês ou francês, principalmente, ao invés de irmos beber à fonte. E mesmo recorrendo a "traduções de traduções", há textos e comentários importantíssimos só disponíveis mesmo em inglês ou francês, ou ainda em italiano ou mesmo espanhol.

Comecei a ler a obra no mesmo dia que comprei. É um prazer reler o “Hipólito”, de Eurípedes, e a “Fedra”, de Racine, assim como ter o primeiro acesso integral à “Fedra”, de Sêneca. E, mais ainda: com os textos lado-a-lado, usufruindo do conhecimento das suas semelhança e das suas diferenças, diferenças essas que fazem o colorido particular de cada ponto-de-vista proferido pelo autor e por sua época.

Esse post é apenas para registrar que estou nesse processo de degustar essa obra. Mas, em antecipação, um breve resumo da história, para aqueles que não conhecem o enredo, terem idéia do fio narrativo da história:

Hipólito é filho de Teseue enteado de Fedra. Esses personagens se enquadram em complexos mitologemas, que não podemos destrinchar no momento, para não complicar nossa abordagem assumidamente resumida – basta dizer que Teseu, filho do deus Posseidon (ascendência que, aliás, será funestamente utilizada no trágico final da história), é um dos mais profícuos heróis da mitologia grega, somente comparável a Heracles, e que Fedra era filha do rei Minos, de Creta, e havia se unido a Teseu após o mesmo ter abandonado sua irmã Ariadne (que o ajudara a eliminar o Minotauro) em Naxos, no caminho de Creta para a Grécia.
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"Hipólito rejeitando Fedra" , pintura de Pierre-Narcise Guérin.


O drama se desenrola no seguinte contexto: Hipólito é um honrado caçador, devotado à castidade - e com a (im)possibilidade de um amor casto e proibido, no caso do texto de Racine - mas que, inopinadamente e estando Teseu ausente, se torna o "obscuro objeto do desejo" de Fedra, que se arde de paixão pelo enteado. Hipólito não se deixa seduzir, mas Fedra, em desespero, toma uma atitude radical, mesclada com uma funesta forma de vingança; nesse ponto, Teseu retorna.

No clímax da ação, todos eles encontram um fim trágico, seja pela traição dos próprios sentimentos, seja como vítimas dos sentimentos do outro ou ainda pela ingrata tentativa de restabelecer a honra.

O texto é um grande exercício da “amplificação” junguiana, ou seja, da utilização de mitos como linguagem para se dialogar com as profundezas do inconsciente. Na versão de Eurípedes isso fica mias evidente ainda, pois as deusas Ártemis e Afrodite são personagens que atuam e fazem um contraponto de pólos opostos, dentro do qual Hipólito infringe a regra do métron (a "justa medida"), tão cara à cultura grega, e se devota unilateralmente à castidade de Ártemis, desprezando com orgulho desmedido as graças de Afrodite, provocando o fatal ressentimento desta última.

A propósito, nunca vi a encenação de nenhum dos três textos, mas gostaria de ressaltar duas das montagens do texto de Racine:

- uma nos anos 80, celebrizada pela presença de Fernanda Montenegro, dirigida por Augusto Boal, em texto traduzido por Millor Fernandes (que foi a primeira tradução dessa “Fedra” que eu li);

- outra, em 1997, dirigida por Antonio Abujamra, apenas com atrizes (inclusive nos papéis masculinos), tendo Ana Paula Arósio como Hipólito e Mika Lins como Arícia.

Oportunamente, volto ao assunto com mais profundidade.


OUVINDO NA SEMANA PASSADA - Fev/09 - RADIOHEAD e KATE BUSH

Pois é, vocês já ouviram falar do Vander. Ele me gravou algumas coisas, entre elas, em um CD, as músicas do último Radiohead e, para complementar, mais cinco músicas recentes da Kate Bush. Ouvi bastante esse CD na semana passada. O Vander é tão fã do Radiohead que foi um dos primeiros a comprar ingressos para os shows deles no Brasil agora em março: vai em dose dupla, em Sampa e no Rio. As músicas deles têm virtudes, claro, mas preciso ouvir mais para entrar melhor no clima, pois não me "pegaram" de vez. Ao contrário, a Kate Bush foi uma boa surpresa: eu conheço muito pouco dela além de seu mega-sucesso, "Wuthering Hights". Uma música em particular me chamou muito a atenção e, como o Vander não anotou nome de música nenhuma, meu inglês, ainda que macarrônico, foi de grande valia: peguei de ouvido alguns versos e busquei no google (seja louvado!). Descobri que ela se chama "Moments of Pleasure" e que tem, inclusive, clipe no youtube (http://www.youtube.com/watch?v=D5P0v0kGauc). Num post mais oportuno, posso falar mais especificamente a respeito da Kate e do que penso das suas músicas. Aqui só fica um recado: sua voz funciona como um fascinante instrumento e, nessa música em particular, vocês poderão ver como ela usa seus notáveis agudos com precisão, evitando quaisquer exageros. E ainda descobri que outro grande amigo, o dr. Mauro, é fã há muito tempo da Kate, tem praticamente todos os CDs dela e vai me gravar uma boa coletânea. Já estou aguardando, aliás.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

HISTÓRIAS MÍNIMAS: "Trocando as bolas, digo, as solas..."

Fato verídico ocorrido com um primo do blogueiro. Esse primo distante, dentista, morou por cerca de dois anos em Portugal. Pois bem, quando estava lá, tinha um sapato do qual gostava muito e que estava ótimo estado - exceto pelas solas que estavam gastas, de forma que quis trocá-las. Foi a um sapateiro e, como qualquer um de nós faria, solicitou: “- Gostaria que o sr. trocasse as solas dos sapatos, por favor” – enquanto mostrava as solas do par de sapatos, um em cada mão. No dia aprazado, foi buscar os sapatos. Quando pegou-os, viu que havia algo errado. As solas continuavam gastas, mas algo parecia tão estranho que, num primeiro instante, não conseguiu entender muito bem. Então, perguntou: “Mas eu não pedi para o sr. trocar as solas? Elas continuam gastas!”. Aí veio a resposta: “Tu não pediste pare eu trocar as solas dos sapatos? Ora pois, eu troquei... pus a sola da direita no sapato esquerdo e a sola esquerda no direito!”. Um primor da proverbial literalidade portuguesa.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

"A PAIXÃO DE CRISTO", de Mel Gibson: anti-semitismo ou não?

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Preparem-se para um post extenso... ou simplesmente pulem, se o assunto não interessar! rs.
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Primeiro, uma introdução de como tudo ocorreu: na época do lançamento do filme "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, um crítico on-line recebeu tantas manifestações que resolveu fazer um texto adicional focalizado na sua defesa de que o filme era intensamente anti-semita. Eu li esse texto e discordei radicalmente, de forma que escrevi um comentário-resposta dando explicações plausíveis às evidências que tinham sido levantadas.
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Primeiramente, para que possam se situar convenientemente na minha contra-argumentação, já que ela é calcada ponto-a-ponto nos oito argumentos colocados previamente pelo crítico, seria interessante ler o texto que deu origem à minha manifestação, o que pode ser feito no seguinte link:
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A minha resposta também se encontra publicada entre os comentários a este texto, mas, como se encontra "perdida" entre os demais comentários, vou transcrever, in totum, abaixo. Em tempo: o crítico em questão se chama Pablo.
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Importante: não se trata de um crítica do filme! É apenas um texto discutindo uma aspecto em particular da obra, ou seja, se ela é ou não é anti-semita.
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Como avisei, é extenso e exige algum fôlego. Aos aventureiros, boa leitura!
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Porque "A PAIXÃO DE CRISTO", dirigida por Mel Gibson, NÃO é anti-semita
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Que é um tema polêmico sequer preciso escrever e, devido a isso, nos vemos em meia àqueles que defendem(-se dos outros) e àqueles que atacam(-se uns aos outros). Nesse contexto, vou tomar por base o segundo pronunciamento do Pablo, que veio à tona como uma "tréplica" às "réplicas" que muitos leitores apresentaram em manifestação à sua crítica inicial.

Vamos passo a passo comentar os oito pontos de alegação apresentados pelo Pablo, refletindo sobre possíveis outras interpretações aplicáveis a esses pontos de vista:

1) A 'absolvição' dos romanos e a 'turba' de judeus – Sobre "absolvição dos romanos" por parte do roteiro do filme, falar isso é um tanto quanto relativo, digamos. Jesus não teria praticado crime algum passível de incomodar Roma: não pregou revoltas e nem independência da Palestina. Para os dominadores, portanto, aquilo tudo era um caso de disputa religiosa que não lhes cabia (havia inúmeros grupos messiânicos nesse sentido na época). De fato, o caráter histórico de Pilatos era de um déspota autoritário e criador de incidentes; considerado cruel mesmo por Roma, foi chamado de volta. Essa verdade histórica não aparece no filme simplesmente porque igualmente não aparece na Bíblia, fonte principal do roteiro. A crítica a esse ponto pode ser justa, mas daí convém lembrar que, independente de como Pilatos usualmente se portava no comando, nesse caso ele bem poderia não ter agido como em outras oportunidades. Até porque, como já notado, ele não teria motivos para ter interesse algum naquele imbróglio; na verdade, ele deve ter feito algumas contas pragmáticas na cabeça: o que rende menos clamores, matar esse "dito cujo" ou deixá-lo livre?... Noves fora, parece que o mais fácil e conveniente era crucificá-lo e pronto. Já quanto ao comportamento dos soldados romanos, é explicitamente sádico. No filme, usam requintes de crueldado nas sevícias: isso é uma forma de mostrá-los com "condescendência"? Não sei de onde pode advir essa idéia! (Obs: seria o caso de os italianos sentirem aí uma degradação de seus antepassados e defenderem que o filme é anti-italiano?). Em contraponto, a mulher de Pilatos, Cláudia, se compadece de Jesus e, numa cena tocante, oferece panos brancos para Maria limpar o sangue derramado de Jesus. O qualificativo de "turba" para os judeus deve ser bem explicado: fica claríssimo no decorrer da via crucis que há judeus tanto a favor quanto contra Jesus; muitos incitam a condenação, outros a lamentam (Cirineu – não nominado - a princípio se recusa a carregar a cruz, uma mulher judia lhe diz: "Ajude-o, esse homem é santo!"- ele o faz, e, no final, se horroriza com aquela execução, reconhecendo em Jesus um justo; as mulheres de Jerusalém aparecem aos prantos; Verônica – não nominada no filme – tenta oferecer água a Jesus e limpa seu rosto com o sudário). Mesmo no Sinédrio, há sacerdotes contrários à condenação (um deles explicitamente declara a todos que nada vê de contrário à Lei em Jesus). E não podemos perder de vista: Maria (sua mãe), Maria Madalena, João Evangelista (não nominado, é o homem que ampara as duas Marias), todos os apóstolos e os futuros primeiros convertidos cristãos eram todos judeus. Ou seja: todo o ambiente é contraditório. Não havia voz uníssona contra ou a favor. Mas uma delas prevaleceu no jogo de poderes.

Jesus carrega a cruz diante da multidão: muitos contra, muitos a favor dele.


2) Mateus 27:25`E, respondendo todo o povo, disse: O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos` . Nenhuma surpresa se os detratores de Jesus gritassem, ipsis litteris, essas palavras. Um grupo pode tê-lo gritado com convicção mas, considerando-se as conclusões do primeiro item, isso não necessariamente deve ser extendido a todos os judeus, acusando-os. Muitos outros impropérios devem ter sido proferidos, sem que tivessem sido registrados. Como deve ter acontecido, quiçá, com outras manifestações a favor de Jesus.

3) João 19:11'Aquele que me entregou a ti maior pecado tem' . Com essa frase, primeiramente, Jesus claramente não exime Pilatos de responsabilidade – pelo contrário, é quase uma afirmação cabal de que Pilatos tem sua culpa (afinal: se alguém tem um pecado maior que o teu, você pecou também – é uma comparação de intensidade entre dois "faltosos"), o que fulmina a idéia de que Pilatos é inocentado pela sua fraqueza. A questão é saber quem é o "aquele" (que me entregou a ti). Essa resposta não fica clara. Seria todo o povo judeu? O Sinédrio? Caifás? O diabo? O homem ainda em pecado, em sentido universal? Judas, o apóstolo traidor? Quaisquer dessas respostas podem ser defendidas com o mesmo fervor e torna-se um exercício de afeição pessoal escolher uma ou outra alternativa no contexto do filme. Para não ficar no exercício de equilíbrio-sobre-o-muro, declino minha opinião pessoal de que se trata de uma afirmação de cunho espiritual, culpando de forma genérica os homens por cujas faltas a redenção de Jesus se fez necessária, além de dar a conhecer que Pilatos tem sua falta, claro, mas que foi também um instrumento de fatos que são maiores que ele mesmo no qual coube pela oportunidade de via dupla ("a ocasião faz o ladrão", o que exige a potencialidade do ato e a participação assertiva do agente), uma espécie de paladino da condenação. Acho, inclusive, que Judas Iscariotes também é alguém que serviu de instrumento necessário no drama da redenção cristã e que é injustamente vilipendiado pela tradição, mas esse é assunto para futuros posts...

Jesus diante de Pilatos: este não queria condená-lo, mas lavou as mãos.


4) Barrabás – A caracterização do personagem é uma questão de opção da direção, sem dúvida. Podemos inferir que um condenado daquela época, naquelas condições de cárcere, seja por assassinato doloso ou culposo, não tivesse mesmo uma aparência cavalheiresca. O grotesco da atitude do personagem do filme tem claramente o intuito de exaltar o desprezo pela pessoa de Jesus, tanto por parte dos romanos (que colocaram ambos em pé de equivalência), como por parte daquela parte dos judeus que desaprovaram-no ao preferirem a liberdade Barrabás (ou seja: um reles ladrão ou assassino ou alguma espécie de criminoso comum, mais ou menos cruel, como se queira ver). Esse trecho serve bem para mostrar o quanto Jesus era considerado indigno de importância pelos romanos (a crucificação era uma forma insidiosa de pena, aplicada aos criminosos mais baixos e era defesa a qualquer cidadão romano – como inúmeras pessoas já lembraram, Pedro, que era judeu, foi crucificado, mas Paulo foi decapitado, por ser cidadão romano convertido ao cristianismo no famoso caso do caminho de Damasco). Essa identificação com a humilhação é o contraste mais espetacular para o triunfo da ressurreição e o cumprimento da promessa messiânica magistralmente descrita no célebre capítulo 53 de Isaías (do qual, não por acaso, foi utilizado um versículo para epígrafe do filme).


A atriz Rosalinda Calentano fez o papel de diabo no filme: felizmente, não houve muita polêmica desnecessária quanto a essa caracterização.


5) Satanás entre os judeus – Escrever que há "há pouco espaço para interpretações alternativas que não à 'satanização' do povo judeu" simplemente porque o diabo, por "coincidência ou não" é mostrado muitas vezes entre os judeus é, no mínimo, uma ponto de vista obutso. Vamos abrir as janelas e ampliar os horizontes, alargando esse "pouco espaço", então. Na primeira cena em que ele (ou ela? o personagem é interpretado por uma mulher com notável caracterização andrógina) se insere, no jardim de Getsêmane, trata-se de um confronto frontal apenas com Jesus. Na última, se encontra só e perdido no limbo de seu desespero pela derrota imposta pelo cumprimento da missão por Jesus. Notável também que, numa outra cena, em que aparece andando em meio aos judeus no decorrer da via crucis, há um belíssimo emparelhamento com Maria, mãe de Jesus, que simultaneamente anda entre os mesmos judeus do outro lado da rua. Além do efeito de contraposição cinematográfico em si (um belo efeito, diga-se), essa cena é magistral por mostrar a dialética teológica entre o Diabo e a Mulher, cujas raízes remontam à bíblica tentação de Eva pela Serpente, na queda do paraíso, evolvendo-se pelos séculos nas promessas do retorno ao Paraíso Perdido e sendo resolvida na escatologia da vitória da Mulher na pessoa de Maria (a AVE, contrário de EVA) – conforme materializado na iconografia de Nossa Senhora das Graças, que de braços abertos demonstra sua qualidade de gratia plena enquanto pisa e esmaga a cabeça da Serpente. Mas o principal, que pode ser deduzido diretamente do filme, sem necessidade de recursos teológicos como esses: se concordarmos que o diabo está (quase) sempre entre os judeus, instigando-os e tentando-os, estamos, na verdade, dando o beneplácito de um atenuante - afinal, se a "turba" agiu incitada pelo diabo, tem flagrantemente menor culpa que se o fizesse por si mesma e pelos próprios sentimentos. A interpretação residual seria que, mesmo os judeus que culparam Jesus (no Sinédrio e na multidão), o fizeram sob forte comoção passional deflagrada ou pelo diabo, o responsável em tentar o Homem desde a queda de Lúcifer no decorrer dos tempos (tomando o diabo como realidade, em termos de explicação espiritual) ou pelo fenômeno da psicologia de massas, que pode ter efeitos supreendentemente bons, como nos casos de solidaridades social frente a grandes tragédias, ou más, como no caso do nazi-fascismo (tomando o diabo como metáfora, em termos de explicação mais científica). A opção plástica pela figura andrógina e sub-humana ainda realça marcadamente o seu caráter universalista, excluindo-o de identificação com grupos e pessoas. Falta observar algo que muitos críticos já declamaram: a surpresa pela falta de polêmica em torno dessa opção de fazer o diabo ser representado por uma mulher (ainda bem, pois penso que não seria uma polêmica muita frutífera).


Num dos momentos mais tocantes do filme, a infatigável Maria corre para ajudar Jesus. E este lhe fala: "Mãe, não vês comoeu renovo todas as coisas?"

6) A fotografia – Identificar "azul = espiritual e bom" e "vermelho=raiva e ódio" é uma simplificação grosseira. O ambiente do Getsêmane, de noite enluarada e com neblina, convida naturalmente a tons azulados, como a própria experiência do mundo real nos inspiraria – e isso é motivação de efeitos técnicos, não ideológicos. Se houvesse alguma simbologia de cores com espiritualidade, propriamente, o tom utilizado seria o violeta, a cor universalmente reconhecida como a mais espiritual dentre todas. Da mesma forma, podemos lembrar que o vermelho possui inúmeras qualidades boas, tais como: coragem, ardor, energia, devotamento... todas elas que poderiam ser atribuíveis ao próprio Jesus. Na verdade, esse tópico se encaixaria melhor entre as "liberdades artísticas" do próximo item, não havendo necessidade de ser destacado por si mesmo.


Judas Iscariotes entrega Jesus. No futuro, tenho muito a dizer sobre aquilo que acho ser a injusta satanização de Judas... assunto para muitos outros posts.


7) A 'liberdade artística' de certas seqüências – Liberdades artísticas são de pura e simples escolhas da produção (sob os auspícios do diretor) por definição. Podemos discuti-las em termos de terem alcançado o resultado esperado, se são originais ou pastiches, se possuem apuro técnico, etc. Aqui cabe perfeitamente o ofício da crítica de cinema, que serve para esse tipo de análise, inclusive. Mas, dado que o texto-base não é centrado numa crítica por excelência, mas num aspecto específico do filme (discussão do anti-semitismo), discutir as liberdades puramente técnicas e artísticas não é relevante no momento. Podemos apenas fazer notar que os crucificados da época realmente devem tê-lo sido com pregos nos pulsos e não nas mãos (que não aguentariam a pressão e teriam a palma despedaçada), mas a opção pelas mãos é simplesmente se adequar à tradição iconográfica. Quanto a Jesus ser jogado da ponte, o recurso claramente visa confrontar Jesus, já preso, com o traidor Judas, que a essa hora já se arrependia do ato nefando de lesa-amizade e que se encontrava debaixo dessa ponte. Foi tocado no filme A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO que, a despeito de mostrar a crucificação nos pulsos e não palmas, tem propositalmente liberdades artísticas como nenhuma outra versão da paixão apresenta (incluindo-se na comparação a ópera-rock JESUS CRISTO SUPERSTAR) – e aqui gostaria de deixar claro que acho esses dois filmes interessantíssimos e aconselho às pessoas de mentalidade aberta a assisti-los, se não o fizeram ainda. Mas não está no escopo desse texto falar sobre essas outras duas obras.

Monica Bellucci no papel de Maria Madalena: uma atriz que é, com justiça, considerada uma das mulheres mais bonitas do mundo, encarna um ícone da espiritualidade.


8) A má-fé na divulgação – Quanto à má ou boa-fé que possam ser imbuídas à pessoa de Mel Gibson e à produção, ou demais contendas envolvendo declarações de seu pai ou aprovações tácitas de Gibson a essas declarações, francamente, gostaria de fazer minhas as palavras de Margaret Thatcher, quando instada a dar opiniões sobre alguém do cenário internacional numa entrevista da imprensa escrita que eu li há muito tempo: "NAO FAÇO COMENTÁRIOS SOBRE PESSOAS". Se Gibson é anti-seminta ou não, eu realmente não sei e nem estou tentando resolver essa questão. Estou abordando se o filme A PAIXÃO DE CRISTO, dirigido por Mel Gibson, na forma como foi apresentado às platéias do mundo todo, é anti-semita ou não. Se as convicções pessoais dele foram transpostas para a tela, o que me importa é o efeito dessas transposições na tela – não as convicções particulares dele. Posso gostar, odiar, aprovar, desaprovar, ficar indiferente ou indeciso e me entregar a manifestações passionais ou não a respeito do filme; quanto à pessoa, sinceramente, me eximo de quaisquer envolvimentos.

Quase todos os seguidores fugiram, aqui três que acompanharam Jesus até o último momento: Madalena, Maria e João Evangelista.

A verdade é que, para mim, a questão do anti-semitismo do filme é um tema sobrevalorizado. Serve de projeção aos ódios mútuos de quem quer vê-los em quaisquer lugares. Não vi ninguém discutir a respeito de possíveis características anti-germânicas de "A Lista de Schindler" e nem anti-hindus (ou anti-indianos, se quiser tomar a nação e não apenas o grupo) de "Gandhi". Nem vi virulentos ataques mútuos por causa de "A Missão", que mostra claramente um extermínio indígena pelos colonizadores na América. A julgar pela falta de tato e clareza mental com que "A Paixão de Cristo" de Gibson vêm sido abordada, quaisquer desses filmes citados (e muitos outros) poderiam ter sido objeto de disparates equivalentes.



A maior mensagem de Jesus: o amor e a fraternidade, aqui exemplificada numa das poucas cenas pacíficas de todo o filme, ilustrando a última ceia com os discípulos.


Mas, a despeito de tudo isso, vejo que o filme cumpre a mais nobre missão da ARTE: expressar sentimentos de quem a exercita como autor ou espectador. O que vejo, entre todos os que conheço pessoalmente que o assistiram, é que se trata do tipo de filme que não sai da memória por muitos dias. As pessoas não ficam indiferentes. Elas querem (e nós também!) criticar, elogiar, discutir, recomendar, proibir. Ouvi pessoalmente desde relatos de que "é uma violência burra" até outras declamando que "sou ateu e quase me converti". Acho isso espetacular – DESDE QUE TODOS NÓS MANTENHAMOS O RESPEITO PELA OPINIÃO E PELOS SENTIMENTOS UNS DOS OUTROS. Por fim, gostaria de agradecer a todos que enriquecem o debate e que muitas vezes podem fazer a mim e outros leitores mudarem ou aprimorarem pontos de vista e, particularmente, ao Pablo que, espero!, entenda que escrevi sobre um texto muito específico, procurando sempre respeitar a pessoa com base naquela inestimável lição da "ex-dama de ferro". ABRAÇÃO.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

AUSTRALIAN OPEN 2009 - COMENTÁRIOS PÓS-FINAL

Não preciso falar muito da final vencida por Nadal sobre Federer e nem de análises técnicas da partida. Isso todos os meios de comunicação sobre esportes já divulgaram, em linhas produzidas por pessoas infinitamente mais gabaritadas que eu. Então, vamos ao enfoque puramente pessoal, tecendo algumas reflexões sobre o que aconteceu nessas duas semanas do primeiro Grand Slam do ano:

* FINAL FEMININA: Alguém viu a Safina entrar na quadra?! Vendo a gritante diferença de nível técnico e emocional entre a final feminina e masculina, não há como não concluir que o tênis feminino está precisando desesperadamente de uma rivalidade da estirpe dos duelos de Steffi Graf x Monica Seles;

* DJOKOVIC: Como eu havia dito no post de expectativas, no ano passado, com o campeonato na Austrália, surgiu como a esperada "terceira força" para fazer frente ao monopólio da dupla Federer-Nadal; mas a temporada de saibro e grama funcionou como um funesto ponto de inflexão que nos fez perder totalmente a confiança naquele jogador até então em ascensão, que tinha sido o melhor do circuito no primeiro quadrimestre. Djokovic precisa urgentemente buscar uma estabilidade em alto nível, senão vai estacionar num melancólico ponto intermediário tal qual uma espécie de "versão melhorada" do insípido russo Davydenko (que, apesar de ser um constante top 10 nos últimos anos, não vai deixar saudades em ninguém...);

* MURRAY: Traindo a bolsa de apostas e minhas próprias expectativas, por enquanto provou que é a maior expecatativa do tênis, mas que ainda não chegou a hora de encarar frente-a-frente os maiores em quadra. É verdade que ele já havia dado uma alegada "amarelada" na final do US Open-2008, perdendo facilmente para um Federer necessitado de um resultado consistente para apagar os fracassos da temporada. Mas, desta vez, pelo menos, não perdeu feio: foi eliminado pela grande surpresa do torneio. Vamos dar um crédito ao rapaz, que ainda tem nossa esperança de se tornar "gente grande" vencendo algum Grand Slam dos, digamos, próximos 2 anos;

*VERDASCO: Indubitavelmente, a grande e grata surpresa desse torneio que é famoso por apresentar surpresas. Faltou muito pouco para passar pelo virtual campeão Nadal, a quem vendeu caríssimo a vitória. Foi a maior prova de como o mental pode transformar uma pessoa: em poucos meses, da vitória na Copa Davis pra cá, passando por um surpreendente aconselhamento relâmpago com o legendário Andre Agassi, esse espanhol apresentou um salto quântico no nível do jogo. Se mantiver esse padrão, tem tudo para brilhar. Mas não sabemos ainda se ele tem tempo e disposição para fazê-lo, afinal, não é nenhum garoto em termos de esporte, tem 25 anos e meio (estando, assim, mais para "aposentando" que "revelação"). De qualquer forma, co-protagonizou um jogo histórico com o compatriota Nadal;

*FEDERER: Fez um torneio quase irrepreensível, inclusive se superando ao virar o jogo contra Berdichy. Ao ganhar facilmente do freguês Rodick, contando ainda com um dia a mais de descanso que um exausto Nadal (que foi levado ao extremo no jogo com Verdasco), quase todos tinham como favas contadas seu tretracampeonato em Melbourne. O que ninguém "combinou com os russos" foi o fato de que, do outro lado da rede, na final, estava exatamente o touro espanhol. Federer, que já é lenda viva do tênis, provou mais uma vez que treme diante do antigo rei do saibro e ainda nos fez ficar surpresos com um desabamento em lágrimas, que pode ser visto sob a ótica de duas faces da moeda vitória/derrota: se por um lado mostra sua humanidade e propiciou uma tocante oportunidade para que Nadal mostrasse uma nobreza ímpar na sua solidariedade, nos deixa estupefatos demonstrando um atitude de garoto mimado que não sabe perder e que infantilmente se pensa como único eterno ganhador;










À esquerda, Federer, após perder e interromper seu discurso desabando em choro, tenta se conter vendo a taça de campeão sendo levada a Nadal. À direita, o campeão Nadal abraça Federer, se solidarizando e trazendo a nós o que há de mais cavalheiresco nesse esporte de nobreza par excellence que é o tênis.

*NADAL: Só mesmo os mais ferrenhos "nadalistas" esperavam que tudo acontecesse dessa forma. Eu, que sou um declarado torcedor desse espanhol, fui "mais realista que o rei" e foquei mais as limitações que as superações do rapaz. Também, seu retrospecto nos Slams de quadra dura não eram dos melhores se comparados com os de Roland Garros e Wimbledom. Mas ele já havia aprontado em Master Series e nas Olimpíadas, dando noções de seu real potencial. Vou deixar para comentar das virtudes do Nadal em posts futuros, então só vou falar duas coisas aqui: 1) Ele é um exemplo para todos em geral, e para os jovens e crianças em particular, não só no esporte, mas para a vida como um todo; 2) Podem crer: Nadal não veio ao mundo a passeio...

Acima, Nadal faz da quadra o berço de um herói: se joga ao chão com o alívio dos vencedores, logo após conseguir o match point - ou melhor, o champioship point.