quarta-feira, 15 de abril de 2009

O QUE SERIA DO AMARELO...

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O carnavalesco Milton Cunha, inspirado pelos recentes acontecimentos amplamente noticiados a respeito da indas e vindas do jogador Adriano, postou um comentário sobre a relatividade da felicidade (e das coisas que podem nos fazer felizes). As reflexões do Milton sempre são interessantes e remeto-os ao texto original no blog: http://odia.terra.com.br/blog/miltoncunha/ .

Concordo, em linhas gerais, com os argumentos dele a respeito do caso. Afinal, da liberdade de sentimentos e afeições que a alma humana tem, surge naturalmente uma diversidade que deve ser respeitada, sendo que uns gostam de champagne e, outros, de aguardente. E cada um pode ser feliz à sua maneira. "Ado, ado, ado, cada um no seu quadrado"!

Santo Agostinho, pagão que achou a sua verdade e felicidade últimas no cristianismo.

Coincidentemente, numa profícua discussão com colegas aprendizes-de-filósofos envolvendo as teses de Santo Agostinho, tocamos diretamente na questão da busca da verdade e da possibilidade de haver um critério absoluto que capacitasse alguém a emitir juízos de valor sobre a questão de outrem ter atingido ou não a verdade e a felicidade plenas.

Só pela exposição do tema já podemos dar um passo à frente e colocarmos na berlinda a própria pertinência das perguntas envolvidas. Afinal, juízos de valor a respeito “da” verdade necessariamente partem do pressuposto de que há “uma” verdade – o corolário é que todas as demais “alegações de verdade” que não se coadunem com ela seriam, então, “não-verdades”.

Não podemos nos arrogar a autoridade de impor gostos, opiniões e nem mesmo raciocínios lógicos próprios a todos os demais. Numa frase lapidar, Clarice Lispector escreve no romance "A maçã no escuro" (um dos livros da minha vida):
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"O que seria do amarelo se não fosse o mau-gosto?"
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Muito antes de ser uma forma de censura, sempre entendi essa sentença como uma ode literária à liberdade de cada um, trazendo à tona a factual existência livre dos desejos e afeições, por meio de uma pergunta marota e maliciosa, carregada mais de afirmação que de dúvida, garantindo assim a existência de todos os gostos & desgostos.

E focalizando bem a questão, qual seria o critério para terceiros dizerem, de alguém que alcançou seu contentamento perfeito dentro de suas próprias normas de pensamento, que essa pessoa não encontrou "a verdade", apesar da sua auto-satisfação? Seja lá qual fosse esse critério, seria necessariamente relativístico!

E, falando em relatividade, podemos pinçar idéias da Relatividade Geral de Einstein e trazer à tona uma de suas conclusões: não há um ponto-de-vista único e absoluto privilegiado para se definir as leis da física, todos os pontos de vista são igualmente válidos, alguns deles chegando a soluções aparentemente paradoxais. É célebre o exemplo dos gêmeos que se separam (um ficando na Terra e outro indo viajar numa velocidade o mais próxima da luz possível) e, no reencontro, percebem que um envelheceu mais que o outro, pois o tempo passou de forma diferente para ambos. Se a realidade da não-existência de pontos-de-vista privilegiados e absolutos é válida para a física, regida pelas leis matemáticas ancoradas na objetividade científica, imaginem então para a subjetividade da consciência de cada um de nós...

Aceitando a relatividade dos conceitos filosóficos, é natural concluirmos que, se o alcance da verdade não pudesse ser AFIRMADO (por quem tem a convicção que alcançou), muito menos poderia ser NEGADO (por quem "julga" de fora e tem seus próprios pressupostos)!

Assim, se alguém, se utilizando de um sistema de pensamento aprovado pelo seu julgamento pessoal, se alçar ao pináculo do auto-contentamento, eu diria que tal pessoa alcançou aquilo que ser propôs, ou seja, achou a sua verdade. Quem partilhar das mesmas teses vai reconhecer prontamente este pleno êxito.

E àqueles que não partilharem dessas teses e acusá-lo(s) de serem auto-iludidos, eles podem seguir adiante e repetir o dito de Jesus: "Pai, perdoai-vos, eles não sabem o que fazem" ou se utilizar de uma expressão, por assim dizer, mais direta, respondendo que "os cães ladram e a caravana passa".

As diferentes faces do diamante: todas elas resplandecem sua preciosidade única.

A relatividade dos conceitos, vamos ressaltar mais uma vez, garante que esses paradoxos não significam necessariamente que alguém está "certo" e que os outros estão "errados": penso que é um fato que a verdade pode ser vista de muitos ângulos. Basta lembrar da velha metáfora do diamante lapidado... essencialmente o mesmo, mas com muitas faces diferentes que transparecem sua preciosidade de diferentes formas e com diferentes brilhos.

Milton Cunha tem razão em defender as razões particulares para a felicidade de cada um, bem como Adriano, o jogador cognominado "Imperador" (alcunha que advém do fato de Adriano ser o nome de um Imperador da Roma Antiga), tem razão em viver as suas razões de sua felicidade pessoal, que a ninguém mais deveria importar ou incomodar.

Nessa relatividade toda, só tenho uma certeza:

Quem não encontra sua verdade dentro do seu próprio sistema de pensamento, esse não encontrou nada mesmo!

Por fim, não me considero de mau gosto, mas aprecio o amarelo! Que, aliás, é a cor que mais lembra o dourado do ouro e o fulgor do brilho do sol... mas também, segundo um trecho da crônica "Tempo Amarelo", de Renato Carneiro Campos (utilizada como fonte de inspiração no interessante filme "Amarelo Manga") é a cor "dos cabos das peixeiras, da enxada e da estrovenga. Do carro de boi, das cangas, dos chapéus envelhecidos, da charque. Amarelo das doenças, das remelas dos olhos dos meninos, das feridas purulentas, dos escarros, das verminoses, das hepatites, das diarréias, dos dentes apodrecidos" .

Lendo isso, não é que a curiosa pergunta de Clarice ganha mesmo contornos nítidos e escatológicos? Mas, claro, também isso é relativo. E continuo entendendo esse cirúrgico lance de genialidade clariceana mais como "salvaguarda" que como "acusação" ao amarelo - e ao gosto (bem como à falta de gosto) alheio.
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