quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

CRÍTICA: "UM CONTO DE NATAL"

O último filme que vi em 2008, no dia 23, quase véspera de Natal, foi o francês “Um Conto de Natal”, título algo irônico, pois trata-se, na verdade, de um “anti-Natal”, ou, ao menos, muito diferente do Natal como entendido nos filmes do “mainstream”. O enredo gira em torno de súbita doença da matriarca Junon (Catherine Deneuve), que para não morrer necessita de alguém compatível que possa lhe fazer uma doação de medula. Há, também, uma história similar do passado, que decorreu na morte de seu primeiro filho. De certa forma, ocorre uma centralização na figura de Junon e também uma forte polarização com um dos filhos, Henri (Mathieu Amalric), entre os quais se configura uma relação mutuamente impregnada de ódio - ou melhor: desprezo. Mesmo assim, os dramas diversos de cada um dos membros e agregados da família têm seu tempo e lugar no roteiro. O filme mostra, com uma pujante autenticidade que supera as idealizações, os atritos oriundos de pensamentos/sentimentos normalmente incofessáveis nas relações humanas. Em geral, não suportamos nem a fragilidade e nem a sinceridade de nós mesmos e dos outros; nossos atos e diálogos reais são todos “podados” por um cuidado em “não machucar” e nem “ser machucado”, o que nos leva a escamotear verdades brutas para que o cenário de sonhos não seja danificado. Em prol de uma tranqüilidade de superfícies, não mergulhamos em águas profundas, que certamente podem ser perigosas, mas sem o que a essência dos nossos laços afetivos não é atingida. Na família de “Um Conto de Natal”, essas privações de liberdade não existem, as pessoas sempre encontram alguma forma de se expressar, sem que isso destrua as ligações viscerais que há entre elas. Mesmo quando se agridem, ou principalmente nesse momento, demonstram uma exemplar intimidade, aquela especial intimidade que sobrevive a quaisquer ações ou palavras dos momentos isolados. Cada tempestade, por pior que seja, se esgota por si mesma – e, após o soco no estômago vazio, todos se sentam para jantar e seria possível pedir ao seu “agressor” o favor de passar o azeite, ao que o mesmo atenderia com toda urbanidade. Destaque para a cena do franco diálogo entre a mãe e o filho-problema, à noite, no balanço da parte de fora da casa, um momento-chave paradigmático e que resume, por assim dizer, o “ethos” do filme. Todo o elenco atua de forma elogiável, com especial evidência para a protagonista Deneuve, que representa a essência da alma francesa e prova, cada vez mais, ser um caso raro de talento e beleza que parecem ser eternos. Esse foi, certamente, um dos melhores filmes de 2008, mas não é para todos os paladares: a muitos, parecerá uma chata tergiversação, que nada acrescenta, recheada de absurdos desvios familiares rodrigueanos. Essas opiniões, claro, devem ser respeitadas. Em tempo, graças a Luiz Carlos Merten (vide http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20081224/not_imp298414,0.php), descobri que o texto declamado no início é de Ralph Waldo Emerson, escrito como forma de superação da perda de seu próprio filho, cuja leitura provocou a estupefação inicial do diretor, Arnaud Desplechin. Não por acaso, na ceia de Natal, Junon ganha de presente exatamente um livro de Emerson, como poderão ver, de relance, os cinéfilos mais atentos. Cotação: ÓTIMO.

Se digladiam em família e vão ao cinema, digo, à igreja: o filho desprezado, Henri (Amalric), acompanha a mãe, Junon (Deneuve) - mesmo não sendo religiosa, ela tem o hábito de ir à missa do galo na noite de Natal.

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