sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

"A PAIXÃO DE CRISTO", de Mel Gibson: anti-semitismo ou não?

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Preparem-se para um post extenso... ou simplesmente pulem, se o assunto não interessar! rs.
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Primeiro, uma introdução de como tudo ocorreu: na época do lançamento do filme "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, um crítico on-line recebeu tantas manifestações que resolveu fazer um texto adicional focalizado na sua defesa de que o filme era intensamente anti-semita. Eu li esse texto e discordei radicalmente, de forma que escrevi um comentário-resposta dando explicações plausíveis às evidências que tinham sido levantadas.
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Primeiramente, para que possam se situar convenientemente na minha contra-argumentação, já que ela é calcada ponto-a-ponto nos oito argumentos colocados previamente pelo crítico, seria interessante ler o texto que deu origem à minha manifestação, o que pode ser feito no seguinte link:
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A minha resposta também se encontra publicada entre os comentários a este texto, mas, como se encontra "perdida" entre os demais comentários, vou transcrever, in totum, abaixo. Em tempo: o crítico em questão se chama Pablo.
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Importante: não se trata de um crítica do filme! É apenas um texto discutindo uma aspecto em particular da obra, ou seja, se ela é ou não é anti-semita.
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Como avisei, é extenso e exige algum fôlego. Aos aventureiros, boa leitura!
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Porque "A PAIXÃO DE CRISTO", dirigida por Mel Gibson, NÃO é anti-semita
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Que é um tema polêmico sequer preciso escrever e, devido a isso, nos vemos em meia àqueles que defendem(-se dos outros) e àqueles que atacam(-se uns aos outros). Nesse contexto, vou tomar por base o segundo pronunciamento do Pablo, que veio à tona como uma "tréplica" às "réplicas" que muitos leitores apresentaram em manifestação à sua crítica inicial.

Vamos passo a passo comentar os oito pontos de alegação apresentados pelo Pablo, refletindo sobre possíveis outras interpretações aplicáveis a esses pontos de vista:

1) A 'absolvição' dos romanos e a 'turba' de judeus – Sobre "absolvição dos romanos" por parte do roteiro do filme, falar isso é um tanto quanto relativo, digamos. Jesus não teria praticado crime algum passível de incomodar Roma: não pregou revoltas e nem independência da Palestina. Para os dominadores, portanto, aquilo tudo era um caso de disputa religiosa que não lhes cabia (havia inúmeros grupos messiânicos nesse sentido na época). De fato, o caráter histórico de Pilatos era de um déspota autoritário e criador de incidentes; considerado cruel mesmo por Roma, foi chamado de volta. Essa verdade histórica não aparece no filme simplesmente porque igualmente não aparece na Bíblia, fonte principal do roteiro. A crítica a esse ponto pode ser justa, mas daí convém lembrar que, independente de como Pilatos usualmente se portava no comando, nesse caso ele bem poderia não ter agido como em outras oportunidades. Até porque, como já notado, ele não teria motivos para ter interesse algum naquele imbróglio; na verdade, ele deve ter feito algumas contas pragmáticas na cabeça: o que rende menos clamores, matar esse "dito cujo" ou deixá-lo livre?... Noves fora, parece que o mais fácil e conveniente era crucificá-lo e pronto. Já quanto ao comportamento dos soldados romanos, é explicitamente sádico. No filme, usam requintes de crueldado nas sevícias: isso é uma forma de mostrá-los com "condescendência"? Não sei de onde pode advir essa idéia! (Obs: seria o caso de os italianos sentirem aí uma degradação de seus antepassados e defenderem que o filme é anti-italiano?). Em contraponto, a mulher de Pilatos, Cláudia, se compadece de Jesus e, numa cena tocante, oferece panos brancos para Maria limpar o sangue derramado de Jesus. O qualificativo de "turba" para os judeus deve ser bem explicado: fica claríssimo no decorrer da via crucis que há judeus tanto a favor quanto contra Jesus; muitos incitam a condenação, outros a lamentam (Cirineu – não nominado - a princípio se recusa a carregar a cruz, uma mulher judia lhe diz: "Ajude-o, esse homem é santo!"- ele o faz, e, no final, se horroriza com aquela execução, reconhecendo em Jesus um justo; as mulheres de Jerusalém aparecem aos prantos; Verônica – não nominada no filme – tenta oferecer água a Jesus e limpa seu rosto com o sudário). Mesmo no Sinédrio, há sacerdotes contrários à condenação (um deles explicitamente declara a todos que nada vê de contrário à Lei em Jesus). E não podemos perder de vista: Maria (sua mãe), Maria Madalena, João Evangelista (não nominado, é o homem que ampara as duas Marias), todos os apóstolos e os futuros primeiros convertidos cristãos eram todos judeus. Ou seja: todo o ambiente é contraditório. Não havia voz uníssona contra ou a favor. Mas uma delas prevaleceu no jogo de poderes.

Jesus carrega a cruz diante da multidão: muitos contra, muitos a favor dele.


2) Mateus 27:25`E, respondendo todo o povo, disse: O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos` . Nenhuma surpresa se os detratores de Jesus gritassem, ipsis litteris, essas palavras. Um grupo pode tê-lo gritado com convicção mas, considerando-se as conclusões do primeiro item, isso não necessariamente deve ser extendido a todos os judeus, acusando-os. Muitos outros impropérios devem ter sido proferidos, sem que tivessem sido registrados. Como deve ter acontecido, quiçá, com outras manifestações a favor de Jesus.

3) João 19:11'Aquele que me entregou a ti maior pecado tem' . Com essa frase, primeiramente, Jesus claramente não exime Pilatos de responsabilidade – pelo contrário, é quase uma afirmação cabal de que Pilatos tem sua culpa (afinal: se alguém tem um pecado maior que o teu, você pecou também – é uma comparação de intensidade entre dois "faltosos"), o que fulmina a idéia de que Pilatos é inocentado pela sua fraqueza. A questão é saber quem é o "aquele" (que me entregou a ti). Essa resposta não fica clara. Seria todo o povo judeu? O Sinédrio? Caifás? O diabo? O homem ainda em pecado, em sentido universal? Judas, o apóstolo traidor? Quaisquer dessas respostas podem ser defendidas com o mesmo fervor e torna-se um exercício de afeição pessoal escolher uma ou outra alternativa no contexto do filme. Para não ficar no exercício de equilíbrio-sobre-o-muro, declino minha opinião pessoal de que se trata de uma afirmação de cunho espiritual, culpando de forma genérica os homens por cujas faltas a redenção de Jesus se fez necessária, além de dar a conhecer que Pilatos tem sua falta, claro, mas que foi também um instrumento de fatos que são maiores que ele mesmo no qual coube pela oportunidade de via dupla ("a ocasião faz o ladrão", o que exige a potencialidade do ato e a participação assertiva do agente), uma espécie de paladino da condenação. Acho, inclusive, que Judas Iscariotes também é alguém que serviu de instrumento necessário no drama da redenção cristã e que é injustamente vilipendiado pela tradição, mas esse é assunto para futuros posts...

Jesus diante de Pilatos: este não queria condená-lo, mas lavou as mãos.


4) Barrabás – A caracterização do personagem é uma questão de opção da direção, sem dúvida. Podemos inferir que um condenado daquela época, naquelas condições de cárcere, seja por assassinato doloso ou culposo, não tivesse mesmo uma aparência cavalheiresca. O grotesco da atitude do personagem do filme tem claramente o intuito de exaltar o desprezo pela pessoa de Jesus, tanto por parte dos romanos (que colocaram ambos em pé de equivalência), como por parte daquela parte dos judeus que desaprovaram-no ao preferirem a liberdade Barrabás (ou seja: um reles ladrão ou assassino ou alguma espécie de criminoso comum, mais ou menos cruel, como se queira ver). Esse trecho serve bem para mostrar o quanto Jesus era considerado indigno de importância pelos romanos (a crucificação era uma forma insidiosa de pena, aplicada aos criminosos mais baixos e era defesa a qualquer cidadão romano – como inúmeras pessoas já lembraram, Pedro, que era judeu, foi crucificado, mas Paulo foi decapitado, por ser cidadão romano convertido ao cristianismo no famoso caso do caminho de Damasco). Essa identificação com a humilhação é o contraste mais espetacular para o triunfo da ressurreição e o cumprimento da promessa messiânica magistralmente descrita no célebre capítulo 53 de Isaías (do qual, não por acaso, foi utilizado um versículo para epígrafe do filme).


A atriz Rosalinda Calentano fez o papel de diabo no filme: felizmente, não houve muita polêmica desnecessária quanto a essa caracterização.


5) Satanás entre os judeus – Escrever que há "há pouco espaço para interpretações alternativas que não à 'satanização' do povo judeu" simplemente porque o diabo, por "coincidência ou não" é mostrado muitas vezes entre os judeus é, no mínimo, uma ponto de vista obutso. Vamos abrir as janelas e ampliar os horizontes, alargando esse "pouco espaço", então. Na primeira cena em que ele (ou ela? o personagem é interpretado por uma mulher com notável caracterização andrógina) se insere, no jardim de Getsêmane, trata-se de um confronto frontal apenas com Jesus. Na última, se encontra só e perdido no limbo de seu desespero pela derrota imposta pelo cumprimento da missão por Jesus. Notável também que, numa outra cena, em que aparece andando em meio aos judeus no decorrer da via crucis, há um belíssimo emparelhamento com Maria, mãe de Jesus, que simultaneamente anda entre os mesmos judeus do outro lado da rua. Além do efeito de contraposição cinematográfico em si (um belo efeito, diga-se), essa cena é magistral por mostrar a dialética teológica entre o Diabo e a Mulher, cujas raízes remontam à bíblica tentação de Eva pela Serpente, na queda do paraíso, evolvendo-se pelos séculos nas promessas do retorno ao Paraíso Perdido e sendo resolvida na escatologia da vitória da Mulher na pessoa de Maria (a AVE, contrário de EVA) – conforme materializado na iconografia de Nossa Senhora das Graças, que de braços abertos demonstra sua qualidade de gratia plena enquanto pisa e esmaga a cabeça da Serpente. Mas o principal, que pode ser deduzido diretamente do filme, sem necessidade de recursos teológicos como esses: se concordarmos que o diabo está (quase) sempre entre os judeus, instigando-os e tentando-os, estamos, na verdade, dando o beneplácito de um atenuante - afinal, se a "turba" agiu incitada pelo diabo, tem flagrantemente menor culpa que se o fizesse por si mesma e pelos próprios sentimentos. A interpretação residual seria que, mesmo os judeus que culparam Jesus (no Sinédrio e na multidão), o fizeram sob forte comoção passional deflagrada ou pelo diabo, o responsável em tentar o Homem desde a queda de Lúcifer no decorrer dos tempos (tomando o diabo como realidade, em termos de explicação espiritual) ou pelo fenômeno da psicologia de massas, que pode ter efeitos supreendentemente bons, como nos casos de solidaridades social frente a grandes tragédias, ou más, como no caso do nazi-fascismo (tomando o diabo como metáfora, em termos de explicação mais científica). A opção plástica pela figura andrógina e sub-humana ainda realça marcadamente o seu caráter universalista, excluindo-o de identificação com grupos e pessoas. Falta observar algo que muitos críticos já declamaram: a surpresa pela falta de polêmica em torno dessa opção de fazer o diabo ser representado por uma mulher (ainda bem, pois penso que não seria uma polêmica muita frutífera).


Num dos momentos mais tocantes do filme, a infatigável Maria corre para ajudar Jesus. E este lhe fala: "Mãe, não vês comoeu renovo todas as coisas?"

6) A fotografia – Identificar "azul = espiritual e bom" e "vermelho=raiva e ódio" é uma simplificação grosseira. O ambiente do Getsêmane, de noite enluarada e com neblina, convida naturalmente a tons azulados, como a própria experiência do mundo real nos inspiraria – e isso é motivação de efeitos técnicos, não ideológicos. Se houvesse alguma simbologia de cores com espiritualidade, propriamente, o tom utilizado seria o violeta, a cor universalmente reconhecida como a mais espiritual dentre todas. Da mesma forma, podemos lembrar que o vermelho possui inúmeras qualidades boas, tais como: coragem, ardor, energia, devotamento... todas elas que poderiam ser atribuíveis ao próprio Jesus. Na verdade, esse tópico se encaixaria melhor entre as "liberdades artísticas" do próximo item, não havendo necessidade de ser destacado por si mesmo.


Judas Iscariotes entrega Jesus. No futuro, tenho muito a dizer sobre aquilo que acho ser a injusta satanização de Judas... assunto para muitos outros posts.


7) A 'liberdade artística' de certas seqüências – Liberdades artísticas são de pura e simples escolhas da produção (sob os auspícios do diretor) por definição. Podemos discuti-las em termos de terem alcançado o resultado esperado, se são originais ou pastiches, se possuem apuro técnico, etc. Aqui cabe perfeitamente o ofício da crítica de cinema, que serve para esse tipo de análise, inclusive. Mas, dado que o texto-base não é centrado numa crítica por excelência, mas num aspecto específico do filme (discussão do anti-semitismo), discutir as liberdades puramente técnicas e artísticas não é relevante no momento. Podemos apenas fazer notar que os crucificados da época realmente devem tê-lo sido com pregos nos pulsos e não nas mãos (que não aguentariam a pressão e teriam a palma despedaçada), mas a opção pelas mãos é simplesmente se adequar à tradição iconográfica. Quanto a Jesus ser jogado da ponte, o recurso claramente visa confrontar Jesus, já preso, com o traidor Judas, que a essa hora já se arrependia do ato nefando de lesa-amizade e que se encontrava debaixo dessa ponte. Foi tocado no filme A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO que, a despeito de mostrar a crucificação nos pulsos e não palmas, tem propositalmente liberdades artísticas como nenhuma outra versão da paixão apresenta (incluindo-se na comparação a ópera-rock JESUS CRISTO SUPERSTAR) – e aqui gostaria de deixar claro que acho esses dois filmes interessantíssimos e aconselho às pessoas de mentalidade aberta a assisti-los, se não o fizeram ainda. Mas não está no escopo desse texto falar sobre essas outras duas obras.

Monica Bellucci no papel de Maria Madalena: uma atriz que é, com justiça, considerada uma das mulheres mais bonitas do mundo, encarna um ícone da espiritualidade.


8) A má-fé na divulgação – Quanto à má ou boa-fé que possam ser imbuídas à pessoa de Mel Gibson e à produção, ou demais contendas envolvendo declarações de seu pai ou aprovações tácitas de Gibson a essas declarações, francamente, gostaria de fazer minhas as palavras de Margaret Thatcher, quando instada a dar opiniões sobre alguém do cenário internacional numa entrevista da imprensa escrita que eu li há muito tempo: "NAO FAÇO COMENTÁRIOS SOBRE PESSOAS". Se Gibson é anti-seminta ou não, eu realmente não sei e nem estou tentando resolver essa questão. Estou abordando se o filme A PAIXÃO DE CRISTO, dirigido por Mel Gibson, na forma como foi apresentado às platéias do mundo todo, é anti-semita ou não. Se as convicções pessoais dele foram transpostas para a tela, o que me importa é o efeito dessas transposições na tela – não as convicções particulares dele. Posso gostar, odiar, aprovar, desaprovar, ficar indiferente ou indeciso e me entregar a manifestações passionais ou não a respeito do filme; quanto à pessoa, sinceramente, me eximo de quaisquer envolvimentos.

Quase todos os seguidores fugiram, aqui três que acompanharam Jesus até o último momento: Madalena, Maria e João Evangelista.

A verdade é que, para mim, a questão do anti-semitismo do filme é um tema sobrevalorizado. Serve de projeção aos ódios mútuos de quem quer vê-los em quaisquer lugares. Não vi ninguém discutir a respeito de possíveis características anti-germânicas de "A Lista de Schindler" e nem anti-hindus (ou anti-indianos, se quiser tomar a nação e não apenas o grupo) de "Gandhi". Nem vi virulentos ataques mútuos por causa de "A Missão", que mostra claramente um extermínio indígena pelos colonizadores na América. A julgar pela falta de tato e clareza mental com que "A Paixão de Cristo" de Gibson vêm sido abordada, quaisquer desses filmes citados (e muitos outros) poderiam ter sido objeto de disparates equivalentes.



A maior mensagem de Jesus: o amor e a fraternidade, aqui exemplificada numa das poucas cenas pacíficas de todo o filme, ilustrando a última ceia com os discípulos.


Mas, a despeito de tudo isso, vejo que o filme cumpre a mais nobre missão da ARTE: expressar sentimentos de quem a exercita como autor ou espectador. O que vejo, entre todos os que conheço pessoalmente que o assistiram, é que se trata do tipo de filme que não sai da memória por muitos dias. As pessoas não ficam indiferentes. Elas querem (e nós também!) criticar, elogiar, discutir, recomendar, proibir. Ouvi pessoalmente desde relatos de que "é uma violência burra" até outras declamando que "sou ateu e quase me converti". Acho isso espetacular – DESDE QUE TODOS NÓS MANTENHAMOS O RESPEITO PELA OPINIÃO E PELOS SENTIMENTOS UNS DOS OUTROS. Por fim, gostaria de agradecer a todos que enriquecem o debate e que muitas vezes podem fazer a mim e outros leitores mudarem ou aprimorarem pontos de vista e, particularmente, ao Pablo que, espero!, entenda que escrevi sobre um texto muito específico, procurando sempre respeitar a pessoa com base naquela inestimável lição da "ex-dama de ferro". ABRAÇÃO.

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